sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Silêncio de Ouro - Merval Pereira

Seu discurso de posse, praticamente repetindo o da vitória na eleição de 30 de outubro, foi das poucas manifestações de viva voz que produziu desde então, fora uma ou outra rápida declaração a jornalistas brasileiros, cada vez mais raras por sinal.

     Houve também uma importante entrevista ao "Washington Post", na qual ela marcou pela primeira vez sua divergência com o Irã sobre a questão dos direitos humanos.
     O silêncio obsequioso é imposto como punição pelo Vaticano a religiosos que defendem doutrinas divergentes da ortodoxia da Igreja Católica.
     Foi imposto, por exemplo, a Leonardo Boff, que defendia a Teologia da Libertação.
    O de Dilma, embora o PT se assemelhe a uma seita religiosa, não lhe foi imposto, mas adotado por ela como maneira de não entrar em choque com o hiperativo Lula quando ele ainda estava em pleno gozo de suas prerrogativas presidenciais e dava mostras diárias de que lhe custaria muito abandonar o poder.
     Depois da posse, Dilma continua em silêncio, o que parece ser uma estratégia para impor um ritmo diferente ao governo sob nova administração.
   Parece ser uma sina petista a mudança de comportamento quando um deles assume a Presidência da República.
    O ex-presidente Lula venceu a eleição como "Lulinha paz e amor", retirando de sua figura política a agressividade que assustava eleitores não ideológicos, e transformou-se durante os oito anos de mandato em um presidente populista, mas obediente à ortodoxia econômica do capitalismo, esquecendo que no programa do PT ainda há a decisão de lutar pelo socialismo.
    Guardou seu esquerdismo anacrônico para as relações externas, e uma ou outra investida de acordo com seus interesses políticos do momento, inclusive contra os meios de comunicação.
     Já a presidente Dilma, que quando ministra parecia estar ligada à ala mais radical do petismo, mostra-se nesses primeiros dias de governo de uma sensatez à prova de má vontades políticas, e começa mesmo a corrigir distorções do governo anterior, algumas aliás que a beneficiaram, como o aumento dos gastos públicos.
   A mesma ministra que brigou em público com seu colega Antonio Palocci, chamando a proposta de conter gastos de "rudimentar", hoje tem nele o principal conselheiro e tenta conter as divergências públicas de seus ministros.
    Além, sobretudo, de comandar os esforços para a contenção dos gastos públicos.
   A mudança mais concreta até o momento parece ser na política externa, onde a questão dos direitos humanos ganha ressalvas na relação com o Irã, cujo governo já começa a dar mostras de estar incomodado.
   O presidente Lula saiu de cena forçado pela legislação, que não prevê um terceiro mandato consecutivo, mas colocou-se como um "reserva de luxo", na definição do atual secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, pronto para entrar em campo em 2014 se o governo de sua pupila não der certo.
  Já que estamos usando metáforas religiosas, vamos lembrar que São Tomás de Aquino considerava a soberba a raiz de todos os pecados.
   Na política, ela leva à arrogância e ao abuso do poder, e é o contrário do espírito democrático.
     O presidente Lula, amparado em uma crescente popularidade, saiu do governo exercendo até o último momento, e mesmo depois dele, as prerrogativas de que se julga merecedor, mesmo quando elas afetam a legislação em vigor.
     Ele, que se acha em condições de dar palpites sobre tudo, de decretar quem merece perdão e quem merece críticas, também se considera no direito de continuar usando o Estado em benefício próprio e dos seus.
     Menos mau que até o momento ele também está em silêncio, e parte do país pode respirar aliviada sem ter que aguentar seus discursos auto-laudatórios diários, que podem ser um bom instrumento de marketing, mas são também evidências da arrogância do poder.
     Mas, para preocupação da presidente Dilma, há também quem sinta falta do estilo histriônico de Lula, e uma sensação de vazio de poder pode trazer-lhe problemas.
    Já há políticos alegando que a presidente, com sua ausência pública, estaria deixando um vácuo de poder, ou pelo menos uma sensação de vácuo de poder, o que em política é a mesma coisa.
    A presidente Dilma terá que ter muita persistência e tenacidade se seu silêncio quer mesmo marcar uma maneira diferente de governar, de perfil mais discreto.
    Os resultados que vier a alcançar é que lhe darão a segurança para persistir nessa batida, e a escolha, se intencional, pode ser uma maneira inteligente de fugir a comparações que só a diminuiriam diante da verborragia e da inegável capacidade de comunicação de Lula.
    Escrevo "se intencional" por que, como se conhece pouco a persona política de Dilma, há o risco de que esse silêncio não seja sinal de uma estratégia, mas apenas consequência de uma incapacidade de se comunicar adequadamente, dificuldade que na campanha eleitoral ficou evidenciada.
    Correríamos o risco de estar diante de uma nova versão do Pacheco, personagem de Eça de Queiroz no livro "A Correspondência de Fradique Mendes".
    Pacheco era tido como brilhante, mas era econômico nas declarações. (...) "Esse talento, que duas gerações tão soberbamente aclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível. O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundidades de Pacheco!."
   (...)"Deputado, diretor-geral, ministro, governador de bancos, conselheiro de Estado, par, presidente do Conselho - Pacheco tudo foi, tudo teve, neste País que, de longe e a seus pés, o contemplava, assombrado do seu imenso talento". (...) "o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto mais invisível e inacessível se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu ser".
     Esperemos que o "enorme talento" da presidente Dilma, pressentido por tantos quanto hoje elogiam sua postura discreta, se mostre na sua inteireza ao país.

O Globo. 13/01/2011

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